15 de março de 2024

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Caos e borboletas

Feridas lambidas, cicatrizes expostas, lama seca agora já transformada em pó, borboletas saindo novamente de seus casulos, muita água, muito querer, nenhuma flor. 
Como caminhar quando existem diversos caminhos, mas nenhuma noção de direção? Como fingir não ter medo quando a realidade bate na porta anunciando que já não há o mesmo tempo e que as coisas não irão acontecer da mesma maneira? A menina continua, mas não possui nenhuma bússola e são poucos os dias em que é possível enxergar o céu. Durante a noite, sempre existe a possibilidade de uma grande enxurrada, ocasionada por motivos diferentes dos iniciais, que ninguém conhece porque ela prefere a ilusão e a viciante excitação do engano ao alinhamento de quereres. 

De certa forma, é bastante provável que o caos tenha se tornado um amigo, à moda daquilo que espera-se de um amigo de longa data, que nos conhece só de olhar e que não precisamos nos alongar em explicações complexas para sermos entendidos, bastando um café e algumas músicas em um sábado qualquer para que todo o sentimento se exponha sem grandes esforços. 

A menina aperta a mão do caos em sinal de cumprimento e o convida para entrar e conversar, misturando todos os sabores e sensações, sentindo com uma intensidade diferente e estranhamente maior e mais sufocante todas as vontades e todos os delírios, todos os medos, os pensamentos intrusivos, as paixões sem cabimento e as emoções sufocadas.

A menina que, ironicamente, sempre preferiu um mundo claro, agora apega-se ao caos. Ele, como moeda de troca, afirma ser o seu amigo mais profundo e mais antigo, tentando convencer a menina a apostar na euforia do que é platônico, a acreditar que está tudo bem vincular com um grande emaranhado de linhas velhas o passado e o futuro e a apostar tudo o que se é na vantagem da loucura. Tratando-se de alguém louco, às vezes é preferível não possuir algumas experiências. É tarde, agora ela já voou muito perto do sol.

Para a menina, sentir o caos é como sentir um tecido muito longo nos enrolando devagarinho, começando pelos pés. O tecido é áspero, quente e de um vermelho muito vivo, de onde não é possível se desvencilhar. Ele incomoda porque não conseguimos afastá-lo e, antes mesmo de qualquer possibilidade de defesa, estamos atados até o pescoço com várias voltas de um lençol escarlate. No fim, nossa fragilidade é a principal culpada. No fim, não nos conhecemos mais porque não conseguimos acompanhar nossos limites.




Eu não sei quando começou. Não sei se foi o cheiro, a sensação de ser percebida, a procura, a identificação no mesmo nervosismo e no medo de ser sozinho no desconhecido ou simplesmente a própria montanha russa em que estamos, porque a vista lá do alto é sempre fascinante e o pânico da descida ainda me emociona e faz eu querer mais.


Nada disso importa de verdade, é só caos. É a poeira nos olhos por causa do vento. Vai passar.

27 de dezembro de 2023

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Insetos

    Chove sem parar. O para-brisa daquele carro frio e duro balança em seu próprio ritmo de vai e vem que parece dançante ao mesmo tempo que também descompassado, pois treme. Em conjunto, acompanhado por pequenos rangidos, ele deixa marcas de rastros no vidro velho como se adquirisse a capacidade de uma agulha de vitrola que percorre repetidamente o mesmo destino circular, ouvindo canções do mundo todo e tirando delas a conclusão de que o ser humano, na sua enorme ignorância, olha somente para o seu próprio reflexo no espelho, apaixonando-se por si mesmo e esquecendo-se do quão pequeno é.

    Será o ser humano na verdade um pequeno inseto? E, se assim for, será ele daqueles insetos frágeis, de aparência bondosa, de leveza que refresca, com asas semitransparentes e cores que o sol reflete e agradam aos olhos do observador ou, opostamente, é o ser humano o mais repugnante de todos os seres, com longas e finas patas pegajosas, com o corpo oco coberto de crostas duras, visto facilmente correndo em direção aos bueiros dos grandes centros? E, sendo inseto, por que um único e minúsculo ser humano pensa ser razoável acreditar que contém em si próprio a expressão da maior dor possível? Por que, logo ele, observador sincero apenas de si mesmo, que faz da sua medida a medida do mundo, que só fala e só produz através de cópias dos que vieram antes dele e que na verdade só se faz bom por causa do suborno do céu, por que logo ele, teria unicamente em si a agregação de todas as emoções puras e autênticas, que invalidam quaisquer outras motivações para permanência do universo?

    No início a menina acreditou ser a única a presenciar a grande tempestade e a testemunhar toda a fúria com que o vento, sem avisar, levou para longe todo o conforto de ter uma estrada que achava segura para caminhar. A tempestade arrasou não só o caminho, mas carregou consigo diversas árvores de raízes profundas, nas quais a menina tentou, em vão, se agarrar. Por fim, restou o solo vazio e revirado, de barro vermelho, encharcado, encharcado de chuva e de lágrimas. 

    Ela, não sabendo mais por onde procurar abrigo, sujou-se ainda mais de lama, escavando com a ponta dos dedos, até sangrar. Quando não conseguiu mais andar, engatinhou e debruçou na tentativa de percorrer o chão duro. Quando os joelhos e cotovelhos não aguentaram, arrastou-se até a beira de uma roseira, a única que seus olhos marejados foram capazes de distinguir e, como se não bastasse todo o escarlate vivo que a tempestade causou, os espinhos da roseira lhe causaram ainda mais dor e foram maiores que todas as rosas. 

    Longos dias expiraram enquanto a menina esteve envolta com o barro que a tempestade deixou. Em alguns dias houve sol, o que pareceu até ser fruto de algo divino e bom, depois novamente gotas profundas marcaram grandes fissuras no solo e foi assim que, depois de tanto procurar razões, a menina achou-se a ela própria e a todos pequeníssimos e insignificantes diante de toda a existência fora de si mesma, inclusive diante de tudo o que ela supunha ser inanimado. Na verdade, sabendo agora o que não sabia antes, a menina encara sozinha a grande tempestade e entende que ela atinge a todos, pois mesmo que seja percebida de forma diferente, a tempestade é grande demais para todos os que sentem. 

    A tempestade que pareceu trazer o fim, na verdade revela devagarinho que existe mais mundo depois do fim do mundo e que todo o fim gera, como uma mãe ansiosa, um novo começo. O ser humano, por mais astuto que pense ser, no fim de tudo é apenas mais um inseto indefinido percorrendo, trêmulo de medo, o novo e verdejante caminho. 


Existem milhares de crianças com a infância violada que choram de desespero enquanto nós, insetos, amamos a nós mesmos e nos sentimos ofendidos pela dor que outro inseto nos causou. Há beleza no mundo fora de nós mesmos. Um dia, nos apaixonaremos novamente por outros pequeníssimos olhos de inseto iluminados pelo sol. Somos, no fim, uma parte insignificante do todo, que é infinitamente maior e melhor que nós mesmos um dia sonharíamos em ser.

17 de setembro de 2023

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E eu, oceano

Com as mãos trêmulas ela escreve uma carta que espera que no fundo ninguém possa ler. É tudo tão novo, tão abrupto e ensurdecedor. As lágrimas caem como se não tivessem importância alguma, o coração acelera a cada lembrança, a cada sinal de que nada disso deveria estar ali.

É irônico que tantos livros que contam a mesma história não sejam suficientes para fazê-la entender aonde isso vai chegar, afinal nenhuma história de amor é igual. Feliz é aquele que reconhece a beleza na luz do luar, no som dos pássaros voltando pro ninho no final do dia, na brisa quente de um entardecer que antecede a chuva mansa que vem chegando de um lugar mais longe ou até no cheiro de um livro novo acompanhado de um café na mesinha de cabeceira. Feliz é aquele que realmente se dá por satisfeito com essa visão. Feliz é aquele que se contenta em sua própria solidão, em sua própria busca pelo mais íntimo de si e pela arte de esculpir a si mesmo e, cada novo ano que nasce, consegue forjar uma versão melhor daquilo que se era antes. Feliz é aquele que suporta bem a ideia de estar só.

O que faria Colombina? Ela gritaria aos sete ventos tudo o que não suporta? Ela abandonaria todas as lembranças como se fossem pétalas de uma flor que envelheceu e secou e agora caem aos poucos no chão escuro e frio? Ela também sentiria no estômago essas mesmas borboletas novas que anseiam tanto pelo risco? As borboletas estão longe de morrer e isso incomoda porque parece não haver mais espaço pra mantê-las a salvo sem expô-las a luz do dia.

É possível inquirir que, apesar de tudo, apesar de toda essa urgência ininterrupta e dolorida, Colombina agradeceria a figura de seu Arlequim. Agradeceria sim, porque existe beleza em toda essa confusão. Existe um novo sopro de vida a cada chegada que antes parecia nem existir, em cada detalhe acinzentado daquele horizonte distante que ela anseia em desbravar. Ela agradeceria porque está de volta ao oceano que carrega em si e finalmente parece ameaçar sair do porto. No fundo, sempre foi o mar que lhe manteve desperta e motivada. Ela precisa da inquietação do mar para sorrir em paz.

29 de junho de 2022

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Cada estrela parecerá uma lágrima

O vento lá fora ainda é forte, a chuva ainda é densa e gelada. A iluminação, já pouca, torna-se mais prejudicada por causa dos postes que piscam sem parar, como se neles houvesse uma espécie de ritmo, que acompanhasse a rapidez com a qual os passantes tentam abandonar a estrada e enfim encontrar o abrigo quente e confortável de suas casas.
A menina está entre eles, andando rapidamente, tentando demonstrar confiança enquanto permanece voltada com o olhar para frente, embora suas linhas de expressão na testa sempre deixem em evidência a grande dúvida que paira em sua mente. No fundo, ela teme ser a única que se sente assim.
Pode ser perigoso andar nessa estrada quando o vento é forte e mais perigoso ainda seria se demorar nesse mesmo caminho quando não há mais certeza sobre quantos estão do seu lado ou quantos vibram com o tropeço nas pedras da rua mal iluminada. Ainda assim, a pequena menina segue, pois percebe que entre as diferentes rotas possíveis, a atual parece a mais certeira, embora se apresente como a mais demorada, a mais duvidosa e, muitas vezes, como a mais solitária e triste das caminhadas.
É difícil precisar superar diariamente a falta. É difícil controlar o peso que é possível colocar em si mesmo, ainda mais quando sempre parece ser necessário carregar mais e mais. É triste finalmente compreender que por mais que as rosas e os girassóis e as lavandas e os lírios sejam bonitos, eles se tornam de pouca utilidade quando tem suas raizes arrancadas do solo. É infinitamente doloroso perceber que a música que mais declara também é aquela provavelmente menos vai ser, sem rodeios, dedicada a alguém. Eros e Tânatos confundiram as suas flechas e até hoje isso dói.
A menina espera que o caminho, embora gelado, se torne certeiro e que o fim, ainda que longe, seja doce e sincero, como o início do anoitecer na primavera, quando a melancolia é menos frustrante e o café com um bom livro podem ser seus fiéis companheiros. Ela continua com a dúvida clara em seu olhar e nítida em sua testa, enquanto observa o destino de algumas pessoas passando por ela. Todos continuam a andar, mesmo sem garantias, mesmo sem saber quanto tempo vai levar.

"Sei que ninguém vai perdoar
Nem mesmo há o que perdoar
É mesmo assim"…


10 de dezembro de 2021

Extraindo o melhor do caos

Já faz tanto tempo que ela não usa a própria imaginação. Todas as pequenas coisas parecem ter desaparecido do seu inconsciente, como pássaros que perdem seus ninhos porque a árvore foi cortada. Ela entra de porta em porta e todos os novos ares parecem cada vez mais densos e fica cada vez mais perigoso respirar naqueles lugares. No fim, todos os caminhos, ruas e vielas por onde ela passou deixaram cicatrizes, trouxeram consequências e assim como transformaram um pouco de quem ela é, ela também deixou um pouco de si para sempre naqueles lugares. 

Que sonho seria acordar amanhã com uma vida nova e pronta, com alegria transbordando pelos olhos, vinda de outro tempo que desaparece lentamente nas lembranças da menina. Provavelmente ela não sabia do quanto poderia antes, do quanto era forte e do quanto novas peças seriam importantes para acabar esse quebra-cabeças gigantesco. 

A menina entende que não precisa de um vício. Não precisa inventar um sonho que não é dela. Não precisa amar aquilo que não ama e nem mesmo fingir que está satisfeita. Quem vai estar ali por ela se nem mesmo ela estiver? Lá fora tem muito mais da mesma dor e sofrimento, mas também tem um dia novo a cada raiar de sol, uma oportunidade nova a cada respirar, uma vida nova em cada mínima escolha de sobreviver em meio ao caos. Como sempre, nada é pra sempre. 

E se, então, você perseguisse tudo o que te faz feliz? Será que da mesma forma que o abismo lhe olha de volta, a alegria também olharia? Será que você poderia voar se enxergasse isso em seus olhos? Será que sempre poderia fazer algo novo? Será que poderia correr ainda mais rápido, até alcançar?
Corra mais, corra mais rápido, ajeite seus passos, não pare para admirar os próprios tropeços, você é o mestre de si mesmo. Onde você está? Não existem remédios e não há como se entorpecer. Onde está o fogo? Talvez nem todas as perguntas tenham respostas. É melhor correr! Amadureça. 

18 de março de 2021

O peregrino busca a Sabedoria

Com a cabeça cheia, a menina continua a andar e a procurar em cada esquina o brilho que lhe parece faltar aos olhos. O vento cortante bate em suas têmporas, o gosto amargo do café segue em sua língua e algumas vezes as lágrimas não hesitam em cair e a lembrar das águas nas quais ela insiste em não mergulhar totalmente. 

O que há lá fora, afinal? O que existe lá fora e que tantos procuram e, quando enfim encontram, seguem a espalhar a novidade, porém esquecem de buscar a devida compreensão? Onde estão essas águas e quando é o momento certo para mergulhar e abandonar quaisquer lembranças de amargura e rancor que restaram de uma vida sem esperança? 

Os dias passam devagar e ela parece pouco entender sobre o que realmente é importante, ainda que siga em sua busca. Os passos parecem cada vez mais apressados, as músicas não tocam como antes e as palavras parecem presas antes mesmo de transformarem-se de pensamentos a expressões verbais. As vezes realmente parece que ela se encontra sozinha em meio a uma multidão de gente e infelizmente muitas vezes isso parte da própria menina que se vê competindo com pessoas tão pequenas como ela, como se todos ali fossem grandes. Quão grande eles são? Comparado a que? A quem?

Quantos absurdos contamos a nós mesmos, quantos absurdos a menina contou a si mesma, por tanto tempo, como se fossem verdades imutáveis. Ela, que tanto ama amar, que tanto ama o infinito, que tanto ama pensar que existem sentimentos e forças eternas, nunca entendeu realmente o eterno, quanto menos entendeu o valor daquilo tudo que é efêmero e não deu importância justamente por ser efêmero. 

A menina seguirá seu percurso, como um viajante ou um peregrino, que conhece lugares e pessoas cada vez mais diferentes e mais instigantes aos seus olhos e à sua mente. As vezes ela se reconhecerá e muitas vezes ela aprenderá. 

Efêmero não significa descartável. 
É o infinito eterno e esse eterno é imutável?
 

10 de agosto de 2020

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Pequeno texto sobre o "encontrar-se"

Lá fora eu vejo pessoas seguindo o seu caminho, encontrando seus pares, procurando uma nova fantasia para ocuparem a mente em seus poderosos aparelhos celulares. As tardes seguem vazias no centro da cidade, sem brilho, sem sorrisos e sem aquelas conversas sinceras que expõem a imensidão existente dentro de cada um. 
As pessoas fingem estarem sozinhas em todos os ambientes, mesmo rodeadas de pessoas. Isso acontece porque assim torna-se fácil passar por cima do medo da comparação, da estigmatização, da vergonha da própria subestimação que conflitua dentro de cada um com o medo de arriscar, travando os músculos, trazendo a impossibilidade de se ir longe, de engatinhar, de simplesmente admitir que toda decisão acarreta um começo. As pessoas tem medo de serem pequenas demais para esse mundo que parece tão grande, mas que pode ser extremamente menor e incrivelmente comum àquilo que cada um tem medo de demonstrar.
Nós seguimos distantes, mesmo sem razões para sofrer, mesmo com uma mão amiga, já cansada, estendida em nossa direção. Procuramos no céu a imensidão que não somos capazes de encontrar em nosso próximo, procuramos a força que as vezes pensamos não haver na beleza de sentir, na beleza de simplesmente prosseguir e deixar o coração bater mais forte. 
Um dia não teremos medo de nos cegarmos com o nascer do sol em nossa fronte, um dia os pássaros estarão mais perto e sentiremos a brisa suave em nossos cabelos. Um dia a utopia tornar-se-á realidade e sentiremos o carinho que estamos, a cada novo amanhecer, preparando a nós mesmos. Será como um agradecimento pelo prosseguimento, pela coragem, insistência e, acima de tudo, pela certeza de amar cada milímetro do que se é. 

Não desista de se encontrar. 

13 de abril de 2020

Humano anatomicamente e sentimentalmente fraco

É como se a menina fosse uma viajante no tempo de um ano bem antes que o ano passado e agora estivesse na janela do ônibus espacial vendo o quanto o presente mudou enquanto ela não estava lá. Pra ela parece que o brilho acabou muito antes e nada do que houve desde então fez algum sentido, como se o tempo estivesse congelado e a vida passasse com ela parada, na espera do momento certo para pular para o estágio favorito. 
As estrelas brilharam durante todas aquelas noites calmas e a chuva voltou a cair centenas de vezes. O alvo foi acertado e a nota mais alcançada no final. A história acabou, a menina releu e até decorou e no final nada parece ter feito nenhum sentido. 
É como se tudo fugisse lá no início para uma realidade paralela em que ela não pôde estar de verdade, como se o caos tomasse conta de todas as boas lembranças e infelizmente só os insultos fossem absorvidos. 
Lá no alto há algo estranho voltando. Lá no alto, um pontinho azul. Um capacete de astronauta. Uma música calma. Um sono profundo desperto. Lá no alto, quem sabe de um jeito menos fraco, quem sabe com um propósito genuíno e até altruísta. Lá do alto desce ela para o chão. É a realidade. Ninguém está salvo. Ninguém está salvo e já passou da hora de encontrar a própria órbita e voltar. 

Somos todos modernos humanos anatomicamente e sentimentalmente fracos. 
Todos e, embora diferentes, não somos melhores e nem piores uns que os outros. Respeite quem você é, sem comparações, seja fiel a si mesmo. 

31 de março de 2020

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A contra-mão pode ser o melhor caminho

É difícil acertar na primeira escolha, é quase impossível tocar o céu no primeiro passo e, mais complicado do que tudo isso, na grande maioria das vezes, é aceitar que não se está no topo do pódio dentro do período previsto.
A vida é feita de andar e andar e nem sempre isso significa caminhar em linha reta, sem cair aqui e ali, sem parar no meio da jornada, sem olhar para trás e criar um grande círculo e, caso este for o objetivo, pode ser que nem sempre a vida seja cíclica também.
Tudo é sobre errar. Isso mesmo! Todas as pequenas partes que compõem o que se é de verdade, somente fazem parte do todo que se é porque foram repetidas, lembradas mais uma vez, porque lá no início saíram erradas e houve a necessidade da repetição por uma, duas, três vezes até que o acorde enfim soasse bem, mas então, no momento de tocar a música, o ritmo resolveu não se adequar. Dessa forma, lá se foram mais incontáveis tentativas, até atingir o êxito tão aguardado. Ou não.
Quem disse que esse acerto aguardado por tantos é assim tão necessário? Quem determinou o que cada indivíduo realmente precisa acertar para ser notado, ser o "bem sucedido"? Você realmente deseja estar onde essas pessoas estão, ansiosas pelo brilho do próprio narciso?
As pessoas correm contra o tempo, buscam a própria satisfação na ótica suja da aceitação social. Passeiam, compram produtos obsoletos porque precisam da sensação de poder ou até mesmo da inveja do próximo para sentirem-se satisfeitos, aprendem a ganhar dinheiro e repetem informações e instruções robotizadas, vendendo sonhos, vendendo música, vendendo bem estar, vendendo a falsa beleza que é exagerada e utilizada muitas vezes como uma camuflagem para uma profunda dor, vendendo conhecimento e esquecendo de realmente ensinar.
As pessoas comem sem necessidade de comer, devido a imensa ansiedade que sentem em viver nesse gigantesco emaranhado de mentiras. Elas rezam sem acreditar e são criticadas quando não o fazem, vivem relacionamentos líquidos objetivando visibilidade por fazer parte de um determinado meio e criam a tecnologia e a globalização afim de amenizar as atividades da vida humana, porém agora elas conhecem tanto sobre um apunhalado de técnicas e não sabem nada sobre como olhar pra dentro de si, sobre como serem realmente humanas. E o pior é que ninguém ousa voltar atrás.
É isso que você quer escolher?
Você não precisa ter medo de assumir que aquilo que pensou que fosse, realmente não era o sentido da vida. Você não é uma pedra e não deve fingir que é.
Seja lento, seja rápido. Tenha força, chore muito. Desacredite de tudo e volte a acreditar logo em seguida. Dê valor aos seus erros, aos seus tropeços. Isso não é motivo para deixar de seguir o seu caminho. Esse caminho, mais do que próspero, bonito e cheio de sentimentos bons, é o seu caminho e só você pode entendê-lo e trilhá-lo.

21 de janeiro de 2020

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As pedras choram sozinhas

Desculpa se agora eu desagrado e desfaço os meus nós que eram antes tão firmes. Desculpe se a minha voz alta agora está rouca porque cansou de gritar. Desculpe se o segredo não é mais segredo porque eu contei. Desculpe se a mágoa não é pouca e se até mesmo a música parou e o violão ficou esquecido, pendurado na parede. 
Agora eu vejo esse retrato torto e percebo o quão era grande o meu encanto por aquilo que só eu senti. Relembro todos aqueles dias em que a alegria imperou no meu tom e no meu riso afrouxado e sem pretensão, quando pensava que todos os "nãos" poderiam ser alterados e o mundo inteiro por fim ficaria mais feliz. Mal sabia eu que na maioria das vezes não é bem assim.
Sei que nunca é pra sempre e que, como dizia Raul, a chuva voltando para a terra, trás coisas do ar e as pedras choram sozinhas permanecendo no momento lugar. Sei que um dia aprenderei a não ter medo da chuva, medo da vida e medo daquilo que desconheço. Pode ser que dê tudo certo e que a água volte a correr rio abaixo, que as árvores floresçam e que o guarda chuva permaneça fechado. Até isso acontecer, ela vai seguir, sempre em frente, porque embora tenha todo o tempo do mundo, até o "pra sempre", sempre acaba. 


Quando penso em alguém, só penso em você. Aí, então, estamos bem. 

20 de janeiro de 2020

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Pertencer-se

Ela pensou ser capaz de alcançar aquilo que estava além da margem do horizonte que pela janela conseguia enxergar. Ela pensou que nunca se sentiria entre amarras e sombras, dentro de uma caverna. Ela pensou que poderia fazer piada, mas no início ela não acreditou que a piada poderia ser ela e que ao sumir o mundo enfim poderia descansar. 
Ela acreditava ser capaz de ganhar qualquer jogo que lhe mostrassem, ganhando todas as peças do tabuleiro. Pensou que poderia transformar qualquer coisa em arte e defender-se até mesmo do que for raivoso e indomável, semelhante ao que Alexandre fez com seu Bucéfalo ao dominá-lo. Ela pensou que teria os mesmos cachos dourados e que seria uma grande guerreira. Ela pensou que estava pronta pra ser alguém que está sempre pronto a lutar.
A menina pensou que precisava ter sempre a melhor armadura e a melhor espada. Ela pensou que deveria tentar sempre ser maior que o mundo e que somente conquistando tudo poderia se encontrar. 
Talvez seja necessário recuperar a consciência e reunir todas as peças perdidas em uma gaveta. Talvez seja necessário limpar as teias e o pó daquilo que ainda restou de si mesma dentro dela, pondo-se a sua própria disposição. É necessário sacudir-se ao vento e correr solta como as crianças correm no gramado. É necessário dar-se um tempo e uma segunda chance de se reconquistar. 
Menina, corra! Corra como se não houvesse amanhã e como se não houvesse nenhuma voz que pudesse lhe comandar. Corra, sem medo de arriscar, sem medo de tentar entender a si mesma, sem medo de mudar. Não haverá prêmio para quem cruzar a linha de chegada depois de um trajeto sem percalços e chegar em primeiro lugar. Não há segunda chance, nenhum olhar de aprovação vai substituir a alegria de pertencer-se. 
Os sinos ainda vão tocar. Eles vão anunciar que o fim chegou e, quando isso acontecer, não poderemos voltar atrás. Um dia tudo se transformará em poeira. Um dia as estrelas vão parar de brilhar nos olhos dela e o jogo vai acabar. 

Quem sabe, um dia ela aprende a cantar, a gritar sem sentir dor, a correr sem olhar para trás e, principalmente, a voar sem cair.