15 de março de 2024
27 de dezembro de 2023
Insetos
Chove sem parar. O para-brisa daquele carro frio e duro balança em seu próprio ritmo de vai e vem que parece dançante ao mesmo tempo que também descompassado, pois treme. Em conjunto, acompanhado por pequenos rangidos, ele deixa marcas de rastros no vidro velho como se adquirisse a capacidade de uma agulha de vitrola que percorre repetidamente o mesmo destino circular, ouvindo canções do mundo todo e tirando delas a conclusão de que o ser humano, na sua enorme ignorância, olha somente para o seu próprio reflexo no espelho, apaixonando-se por si mesmo e esquecendo-se do quão pequeno é.
Será o ser humano na verdade um pequeno inseto? E, se assim for, será ele daqueles insetos frágeis, de aparência bondosa, de leveza que refresca, com asas semitransparentes e cores que o sol reflete e agradam aos olhos do observador ou, opostamente, é o ser humano o mais repugnante de todos os seres, com longas e finas patas pegajosas, com o corpo oco coberto de crostas duras, visto facilmente correndo em direção aos bueiros dos grandes centros? E, sendo inseto, por que um único e minúsculo ser humano pensa ser razoável acreditar que contém em si próprio a expressão da maior dor possível? Por que, logo ele, observador sincero apenas de si mesmo, que faz da sua medida a medida do mundo, que só fala e só produz através de cópias dos que vieram antes dele e que na verdade só se faz bom por causa do suborno do céu, por que logo ele, teria unicamente em si a agregação de todas as emoções puras e autênticas, que invalidam quaisquer outras motivações para permanência do universo?
No início a menina acreditou ser a única a presenciar a grande tempestade e a testemunhar toda a fúria com que o vento, sem avisar, levou para longe todo o conforto de ter uma estrada que achava segura para caminhar. A tempestade arrasou não só o caminho, mas carregou consigo diversas árvores de raízes profundas, nas quais a menina tentou, em vão, se agarrar. Por fim, restou o solo vazio e revirado, de barro vermelho, encharcado, encharcado de chuva e de lágrimas.
Ela, não sabendo mais por onde procurar abrigo, sujou-se ainda mais de lama, escavando com a ponta dos dedos, até sangrar. Quando não conseguiu mais andar, engatinhou e debruçou na tentativa de percorrer o chão duro. Quando os joelhos e cotovelhos não aguentaram, arrastou-se até a beira de uma roseira, a única que seus olhos marejados foram capazes de distinguir e, como se não bastasse todo o escarlate vivo que a tempestade causou, os espinhos da roseira lhe causaram ainda mais dor e foram maiores que todas as rosas.
Longos dias expiraram enquanto a menina esteve envolta com o barro que a tempestade deixou. Em alguns dias houve sol, o que pareceu até ser fruto de algo divino e bom, depois novamente gotas profundas marcaram grandes fissuras no solo e foi assim que, depois de tanto procurar razões, a menina achou-se a ela própria e a todos pequeníssimos e insignificantes diante de toda a existência fora de si mesma, inclusive diante de tudo o que ela supunha ser inanimado. Na verdade, sabendo agora o que não sabia antes, a menina encara sozinha a grande tempestade e entende que ela atinge a todos, pois mesmo que seja percebida de forma diferente, a tempestade é grande demais para todos os que sentem.
A tempestade que pareceu trazer o fim, na verdade revela devagarinho que existe mais mundo depois do fim do mundo e que todo o fim gera, como uma mãe ansiosa, um novo começo. O ser humano, por mais astuto que pense ser, no fim de tudo é apenas mais um inseto indefinido percorrendo, trêmulo de medo, o novo e verdejante caminho.
Existem milhares de crianças com a infância violada que choram de desespero enquanto nós, insetos, amamos a nós mesmos e nos sentimos ofendidos pela dor que outro inseto nos causou. Há beleza no mundo fora de nós mesmos. Um dia, nos apaixonaremos novamente por outros pequeníssimos olhos de inseto iluminados pelo sol. Somos, no fim, uma parte insignificante do todo, que é infinitamente maior e melhor que nós mesmos um dia sonharíamos em ser.
17 de setembro de 2023
E eu, oceano
É irônico que tantos livros que contam a mesma história não sejam suficientes para fazê-la entender aonde isso vai chegar, afinal nenhuma história de amor é igual. Feliz é aquele que reconhece a beleza na luz do luar, no som dos pássaros voltando pro ninho no final do dia, na brisa quente de um entardecer que antecede a chuva mansa que vem chegando de um lugar mais longe ou até no cheiro de um livro novo acompanhado de um café na mesinha de cabeceira. Feliz é aquele que realmente se dá por satisfeito com essa visão. Feliz é aquele que se contenta em sua própria solidão, em sua própria busca pelo mais íntimo de si e pela arte de esculpir a si mesmo e, cada novo ano que nasce, consegue forjar uma versão melhor daquilo que se era antes. Feliz é aquele que suporta bem a ideia de estar só.
O que faria Colombina? Ela gritaria aos sete ventos tudo o que não suporta? Ela abandonaria todas as lembranças como se fossem pétalas de uma flor que envelheceu e secou e agora caem aos poucos no chão escuro e frio? Ela também sentiria no estômago essas mesmas borboletas novas que anseiam tanto pelo risco? As borboletas estão longe de morrer e isso incomoda porque parece não haver mais espaço pra mantê-las a salvo sem expô-las a luz do dia.
É possível inquirir que, apesar de tudo, apesar de toda essa urgência ininterrupta e dolorida, Colombina agradeceria a figura de seu Arlequim. Agradeceria sim, porque existe beleza em toda essa confusão. Existe um novo sopro de vida a cada chegada que antes parecia nem existir, em cada detalhe acinzentado daquele horizonte distante que ela anseia em desbravar. Ela agradeceria porque está de volta ao oceano que carrega em si e finalmente parece ameaçar sair do porto. No fundo, sempre foi o mar que lhe manteve desperta e motivada. Ela precisa da inquietação do mar para sorrir em paz.
29 de junho de 2022
Cada estrela parecerá uma lágrima
A menina está entre eles, andando rapidamente, tentando demonstrar confiança enquanto permanece voltada com o olhar para frente, embora suas linhas de expressão na testa sempre deixem em evidência a grande dúvida que paira em sua mente. No fundo, ela teme ser a única que se sente assim.
Pode ser perigoso andar nessa estrada quando o vento é forte e mais perigoso ainda seria se demorar nesse mesmo caminho quando não há mais certeza sobre quantos estão do seu lado ou quantos vibram com o tropeço nas pedras da rua mal iluminada. Ainda assim, a pequena menina segue, pois percebe que entre as diferentes rotas possíveis, a atual parece a mais certeira, embora se apresente como a mais demorada, a mais duvidosa e, muitas vezes, como a mais solitária e triste das caminhadas.
É difícil precisar superar diariamente a falta. É difícil controlar o peso que é possível colocar em si mesmo, ainda mais quando sempre parece ser necessário carregar mais e mais. É triste finalmente compreender que por mais que as rosas e os girassóis e as lavandas e os lírios sejam bonitos, eles se tornam de pouca utilidade quando tem suas raizes arrancadas do solo. É infinitamente doloroso perceber que a música que mais declara também é aquela provavelmente menos vai ser, sem rodeios, dedicada a alguém. Eros e Tânatos confundiram as suas flechas e até hoje isso dói.
A menina espera que o caminho, embora gelado, se torne certeiro e que o fim, ainda que longe, seja doce e sincero, como o início do anoitecer na primavera, quando a melancolia é menos frustrante e o café com um bom livro podem ser seus fiéis companheiros. Ela continua com a dúvida clara em seu olhar e nítida em sua testa, enquanto observa o destino de algumas pessoas passando por ela. Todos continuam a andar, mesmo sem garantias, mesmo sem saber quanto tempo vai levar.
"Sei que ninguém vai perdoar
Nem mesmo há o que perdoar
É mesmo assim"…
10 de dezembro de 2021
Extraindo o melhor do caos
Já faz tanto tempo que ela não usa a própria imaginação. Todas as pequenas coisas parecem ter desaparecido do seu inconsciente, como pássaros que perdem seus ninhos porque a árvore foi cortada. Ela entra de porta em porta e todos os novos ares parecem cada vez mais densos e fica cada vez mais perigoso respirar naqueles lugares. No fim, todos os caminhos, ruas e vielas por onde ela passou deixaram cicatrizes, trouxeram consequências e assim como transformaram um pouco de quem ela é, ela também deixou um pouco de si para sempre naqueles lugares.
Que sonho seria acordar amanhã com uma vida nova e pronta, com alegria transbordando pelos olhos, vinda de outro tempo que desaparece lentamente nas lembranças da menina. Provavelmente ela não sabia do quanto poderia antes, do quanto era forte e do quanto novas peças seriam importantes para acabar esse quebra-cabeças gigantesco.
A menina entende que não precisa de um vício. Não precisa inventar um sonho que não é dela. Não precisa amar aquilo que não ama e nem mesmo fingir que está satisfeita. Quem vai estar ali por ela se nem mesmo ela estiver? Lá fora tem muito mais da mesma dor e sofrimento, mas também tem um dia novo a cada raiar de sol, uma oportunidade nova a cada respirar, uma vida nova em cada mínima escolha de sobreviver em meio ao caos. Como sempre, nada é pra sempre.
E se, então, você perseguisse tudo o que te faz feliz? Será que da mesma forma que o abismo lhe olha de volta, a alegria também olharia? Será que você poderia voar se enxergasse isso em seus olhos? Será que sempre poderia fazer algo novo? Será que poderia correr ainda mais rápido, até alcançar?
Corra mais, corra mais rápido, ajeite seus passos, não pare para admirar os próprios tropeços, você é o mestre de si mesmo. Onde você está? Não existem remédios e não há como se entorpecer. Onde está o fogo? Talvez nem todas as perguntas tenham respostas. É melhor correr! Amadureça.
18 de março de 2021
O peregrino busca a Sabedoria
O que há lá fora, afinal? O que existe lá fora e que tantos procuram e, quando enfim encontram, seguem a espalhar a novidade, porém esquecem de buscar a devida compreensão? Onde estão essas águas e quando é o momento certo para mergulhar e abandonar quaisquer lembranças de amargura e rancor que restaram de uma vida sem esperança?
Os dias passam devagar e ela parece pouco entender sobre o que realmente é importante, ainda que siga em sua busca. Os passos parecem cada vez mais apressados, as músicas não tocam como antes e as palavras parecem presas antes mesmo de transformarem-se de pensamentos a expressões verbais. As vezes realmente parece que ela se encontra sozinha em meio a uma multidão de gente e infelizmente muitas vezes isso parte da própria menina que se vê competindo com pessoas tão pequenas como ela, como se todos ali fossem grandes. Quão grande eles são? Comparado a que? A quem?
Quantos absurdos contamos a nós mesmos, quantos absurdos a menina contou a si mesma, por tanto tempo, como se fossem verdades imutáveis. Ela, que tanto ama amar, que tanto ama o infinito, que tanto ama pensar que existem sentimentos e forças eternas, nunca entendeu realmente o eterno, quanto menos entendeu o valor daquilo tudo que é efêmero e não deu importância justamente por ser efêmero.
A menina seguirá seu percurso, como um viajante ou um peregrino, que conhece lugares e pessoas cada vez mais diferentes e mais instigantes aos seus olhos e à sua mente. As vezes ela se reconhecerá e muitas vezes ela aprenderá.
Efêmero não significa descartável.
É o infinito eterno e esse eterno é imutável?